Entenda como acolher o medo é importante para o desenvolvimento pessoal
Veja qual é a importância de cuidar dos seus medos corretamente para crescer como pessoa
Veja qual é a importância de cuidar dos seus medos corretamente para crescer como pessoa
Maria Luísa, minha filha de olhos inquietos, tem 5 anos. E tem também mais medos que dedos em suas mãos pequeninas. Quando vê um cachorro na rua, por mais que seja daqueles fofos com que toda criança se encanta, ela se aconchega ao meu corpo e, dependendo da proximidade da “fera”, pede meu colo.
Bruxas de contos de fadas, a escuridão do quarto, a Cuca, a sombra do ventilador, a porta aberta do armário, uma mariposa e uma lagartixa… Seus pequenos e grandes terrores fazem piruetas entre ameaças potenciais e o mundo mágico da infância. Ela agora acha que a árvore que caiu na última tempestade e esmagou um carro na rua poderia derrubar o nosso prédio. Eu explico que um prédio é muito mais forte que um carro e que uma árvore, mas a pequena fica desconfiada.
De vez em quando, acorda tarde da noite e pede que eu segure sua mão. E na manhã seguinte me fala de um sonho ruim. Peço sempre que ela me diga, se souber, se lembrar, o motivo do susto. Ela, então, devolve a pergunta: “e você, papai, tem medo de alguma coisa?”.
Malu só se lembra de uma fobia minha, que acha engraçada: tenho medo de pombas. Aliás, aves em geral – galinhas, pavões, tucanos… (“Ornitofobia” é o termo técnico.) E tudo bem. Não há galinhas ciscando por onde moro, o mais comum é cruzar com pombas na calçada. E a Malu ri com meus ziguezagues para driblar esses pássaros.
Mas, voltando à pergunta dela, minha resposta é sempre a mesma: “meu amorzinho, o maior medo do papai é que você se machuque”. Ela logo saca do que estou falando: uns pulos para lá de ousados que ela gosta de dar entre os móveis, e deles para o chão, numa mistura arriscada de balé, salto ornamental e parkour. Mas essa é uma resposta “econômica”. Poupo a percepção impressionável da Maria Luísa dos tantos medos que eu tenho, e que ultrapassam o número dos dedos das mãos e dos pés, meus e dela:
“O medo simbólico é mais natural na criança, está relacionado ao subjetivo, porque elas estão aprendendo a lidar com as relações, com a fantasia de perda, que tem a ver com as ligações com a mãe e o pai, as interações com outras crianças, as dificuldades de aprendizagem”, explica Fernanda Rímoli, psicóloga, arteterapeuta e orientadora parental.
“Mas, quando entra uma temática social mais grave, como a pandemia, a criança não tem recursos emocionais de enfrentamento, de modo que ela pode desenvolver algum tipo de sintoma. Não necessariamente vai dizer que está com medo, mas pode ter dificuldade para dormir, para se expressar, para brincar…”, diz a psicóloga.
Seja na criança sonhadora ou no adulto mais sem fantasia, o medo é um companheiro que ora se agiganta, ora se dissolve e perde a voz em meio às imprescindíveis distrações da vida. Escondê-lo de nós mesmos, entretanto, é refutar nossa própria humanidade, uma negação que pode ter consequências no equilíbrio psicológico. Mas por que acolher o medo se ele é um mensageiro que tanto nos faz sofrer?
Porque, ao longo da história, esse sentimento também tem sido um melhor amigo. Nós, Homo sapiens, somos prova viva de que o pavor tem uma função evolutiva essencial. Nossos antepassados só sobreviveram às ameaças da savana porque o medo é uma resposta emocional que prepara o corpo para reagir aos perigos: enfrentar ou fugir. Na pior das hipóteses, paralisar. Foi enfrentando ou fugindo de predadores, de doenças e de nós mesmos, que chegamos até aqui. Ainda que o medo nem sempre faça sentido.
Se mesmo com todo o conhecimento sofisticado, de cidadãos do século 21, ainda ficamos apavorados com a ficção de um filme de terror, é porque o medo também tem muito de irracional. E isso pode nos levar a ansiedades exageradas e até a tomar as piores decisões. Por exemplo, nos EUA, após os ataques do 11 de Setembro, os americanos ficaram com medo de viajar de avião. Resultado: em um ano, morreram 1.600 pessoas a mais do que a média em acidentes nas rodovias do país.
Afinal, estatisticamente, aviões são mais seguros do que automóveis. O primeiro passo para não cair nessas armadilhas da mente é reconhecer seus medos. “A estratégia começa por ter consciência do que estou sentindo e do que me amedronta”, explica Fernanda.
“Preciso me conectar a esse medo, não me distanciar, o que é diferente de alimentá-lo. Devo confiar no que estou sentindo e, a partir disso, buscar uma saída para que o medo não seja a única coisa na qual fico pensando. Pode ser uma meditação, uma terapia ou simplesmente uma pausa para se conectar com as próprias emoções. Na educação de crianças, costumo falar com pais e professores para a gente nomear os sentimentos. Quando o medo não tem nome, fica mais sofrido lidar com ele”, diz a psicóloga.
Fica mais difícil ainda quando o nome desse medo é algo que a sociedade tenta esconder. A jornalista Monica Seixas foi dessas meninas expostas a temores que nenhuma criança deveria ter e acabou levando os efeitos desse trauma para a vida adulta. Essa jovem de Itu (SP) era a única criança negra em uma família pobre de pele branca: seus irmãos são brancos, assim como sua mãe, seu pai é que era negro.
“Ser uma criança maltrapilha e negra é ter a sensação de que você não é gente. E, se não é gente, você vive pronto para sofrer violência o tempo inteiro. Fica sempre na defensiva. No mínimo, com medo de que alguém vá fazer um comentário sobre sua estética, que vá te ofender. E isso é uma coisa que te molda, que você leva para o resto da vida. Destrói os afetos, a nossa capacidade de nos relacionar, de ter esperança.”
Esse estado de alerta tem embasamento científico. Um estudo do Centro de Desenvolvimento Infantil da Universidade de Harvard mergulhou em como as experiências adversas do racismo estrutural impactam no comportamento, na saúde física e mental da criança negra. Os pesquisadores concluíram que, no cérebro de meninas e meninos que convivem com o racismo, há um excesso de conexões neurais em áreas dedicadas à resposta ao medo e à ansiedade. O resultado é um tipo de estresse que têm consequências por todo o organismo.
No caso de Monica, uma chavinha virou quando ela viu adolescentes da sua idade argumentando com a diretora da escola sobre a cor do uniforme. Ali, sentiu que podia e merecia ser ouvida. “Eu nunca tinha parado para pensar que, com todo o meu medo de me posicionar, eu poderia escolher alguma coisa. Então fui me meter no movimento estudantil”, conta Monica, eleita deputada estadual (SP) em 2018.
Mas, quando completou um ano de mandato, ela começou a ter sintomas de transtorno de ansiedade. Ficava em pânico diante de situações de interação com plateias, porque, de repente, em vez de discutir seus projetos, as pessoas comentavam sobre seu corpo, sua aparência, seus relacionamentos.
“De uma história de baixa autoestima na infância, passei a uma situação de superexposição e de ser alvo de comentários, que vão desde um elogio de endeusamento às críticas dos haters, racistas e misóginas. Então isso foi demais para mim.”
Além de meses de medicação, Monica foi fazer terapia, e o processo a ajudou a reconhecer seus medos e a origem deles. Nesse contexto de tanta exposição e dor, percebeu que precisava ter mais tempo para si mesma, com um sistema de folgas das situações que induziam o medo.
“Me permiti ser gente: sentir prazer, ter alegria, ter amigos, voltar a ser uma mulher jovem, brincar com meu filho. Antes da pandemia, tinha começado a sair para dançar uma vez por semana. Agora, só ioga online.”
A superexposição, acelerada pelas redes sociais, tem sido um fator contemporâneo que substitui a ameaça dos antigos predadores. E tem muito a ver com a competitividade que nos obriga a excesso de trabalho, de evidência e de consumo que podem sair do controle.
“Neste mundo que exige muito do racional, as pessoas precisam se reconectar à própria intuição, às emoções mais verdadeiras”, aponta a psicóloga Fernanda Rímoli. “Só assim vão superar o medo de ser quem são: elas mesmas.”
É importante, nessa exploração dos próprios medos, identificar o que está fora do seu controle. Se você já fez sua parte para se sentir seguro dentro daquilo que tem como controlar, conforte-se com isso. Essa é uma questão que tem chegado aos consultórios em tempos de coronavírus. O psicólogo e fitoterapeuta Ilan Segre, autor do livro Terapia Integrativa (Ágora), conta que o número de ansiosos que o procuram dobrou nos últimos meses.
“Hoje, além da ansiedade em relação às incertezas da pandemia, como perder o emprego, há o medo real do contágio. Então alguns exacerbam para o espectro obsessivo. Há ocasiões em que a pessoa está em uma sessão online passando álcool nas mãos. E isso na própria casa, sozinha no quarto dela.” Ilan ressalta o lado positivo de que essas são as pessoas que estão buscando ajuda e que, por estarem com medo, tendem a se proteger melhor.
A técnica integrativa associa a terapia pela fala a outros recursos, como melhorar a respiração, ter cuidados com o sono e com a alimentação. Para lidar com estados ansiosos, llan Segre costuma recomendar uma série de exercícios respiratórios de ioga chamados pranayamas. “Há uma escritura muito antiga de ioga que diz ‘quando o ar se move, a mente entra em movimento”, ensina. Os exercícios baixam a ansiedade e, assim, a pessoa pode refletir melhor sobre seus medos. Quão reais e iminentes são as ameaças por trás deles?
No início de sua investigação das filozofias e terapias orientais, o próprio Ilan passou por um período de temores ligados à incerteza: frustrado com o mundo corporativo, largou o cargo de executivo de uma multinacional para passar dois anos na Índia, estudando as origens e os conceitos da terapia que seria seu trabalho na volta ao Brasil. “Foi uma guinada que envolveu diversos medos, principalmente pela abdicação de um status na carreira”, recorda Ilan.
“Tive medo de nunca mais ter dinheiro para o básico, de não conseguir transformar esses novos saberes numa atividade profissional estável, e também da própria Índia. A falta de estrutura em alguns lugares era gritante, a alimentação condimentada e a água, insalubre, me faziam mal. Tive medo de adoecer.”
Os aprendizados no Oriente ajudaram o psicólogo a olhar para dentro de si e reconhecer esses medos. Ele logo entendeu que as ansiedades faziam parte do caminho escolhido pelo seu coração. E os medos, embora permanecessem, foram domados diante de uma potência maior: o seu novo propósito.
Se não há o que fazer contra um tormento que o aflige, seja um temor de doença, desemprego ou o caos do mundo, aceite e assuma esse medo como seu, porque ele está no cerne da nossa sensibilidade, no âmago de quem somos. Foi Nietzsche quem comparou o ser humano a uma corda sobre um abismo: “perigosa travessia, perigoso caminhar; perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar. O que é de grande valor no homem é ele ser uma ponte e não um fim”.
Assim, enfrente seus fantasmas se for possível; corra, se for inevitável. Ou transforme-os em algo produtivo. Como Monica Seixas, que converteu seu medo em ação. “Para mim, a coragem não é a ausência nem o contrário do medo. Se você vir o sentido da palavra, coragem é ‘agir com o coração. E o nosso coração tem espaço para o medo, a revolta, o otimismo e a vontade de ajudar o próximo e a nós mesmos.”
*Por Alexandre Carvalho
Texto originalmente publicado na revista Vida Simples (Edição 231)